Eu, Deus



Nunca é uma coisa definida. Pode ser um sorriso. O jeito de virar a cabeça, prender ou soltar os cabelos. Pode ser um andar, um cruzar de pernas. Pode ser uma pressa, em completo desacordo com um dia lindo, de sol. Ou, ao contrário, uma calma, um sossego, uma quietude, quase que uma levitação, em contraste com um dia árduo, tenso, de pessoas nervosas, apressadas, corpos que se chocam em desalinho. Pode ser uma certa virada de mão, um jeito displicente de mexer nos cabelos. Pode ser o comprimento desses cabelos. Se compridos, por serem longos, sensuais, femininos. Se curtos, curtíssimos até, por uma certa androginia, um modo adolescente, menina-menino. Se lisos ou cacheados, pela delicadeza dos fios retos ou pelo barroco dos curvos. Pode ser uma certa vulgaridade, um batom, uma saia curta, uma coxa grossa, uma risada larga - piranha, vagabunda, puta! Ou um jeito sério e impenetrável de madre superiora. Não há uma fórmula. Infelizmente não segue uma regra - se fosse assim, eu teria cura, eu mesmo me controlaria, procuraria ajuda. Mas como é difuso e impenetrável, completamente inexpugnável, tento, apenas, deixar em cada um desses assassinatos o que eles são para mim - diferentes, ousados, enigmáticos. Quando estou matando a mulher que tenho em minhas mãos, busco que seja sempre diferente, nunca, nada, de modo algum, com a falta de imaginação das mortes sempre iguais, repetidas, monótonas. Se o impulso que me leva a seguir uma mulher é sempre diferente do que me levou a seguir as anteriores, por que deveria matá-la seguindo alguma regra ou ritual? Se sou louco, procuro, ao menos, não ser um louco monótono - o que, confesso, me dá bastante trabalho, porque, ao contrário do senso comum, que nos vê criativos, excêntricos, diferentes, nós, os loucos, somos sistemáticos, metódicos, absolutamente previsíveis e normais em nossas esquisitices – e exatamente por isso somos loucos. O que nos é difícil é não repetir um comportamento, e é por isso que os serial killers como eu mais cedo ou mais tarde acabamos presos – estudam-nos, traçam nosso perfil, nosso modus operandi, e descobrem que matamos tal e tal putinha, o tipo de vítimas preferidas, as mutilações impostas, o esperma, a penetração, a violência – se as estripamos, como Jack, ou as enforcamos, estrangulamos, esfaqueamos, asfixiamos, se retalhamos ou não seus corpos, os enterramos ou atiramos numa estrada, um rio, lançamos ao mar. Tudo isto é meticulosamente estudado pelos policiais especializados em nós, serial killers, e eles não são muitos. A imensa maioria dos policiais passa a vida toda sem entrar em contato conosco. Por isso, para lidarem com alguém como eu eles necessitam de especialistas. Quando crimes com as características dos cometidos por serial killers são descobertos, há um verdadeiro rebuliço na polícia e na mídia. Ao mesmo tempo em que um especialista é convocado (muitas vezes do FBI, que possui os melhores, exatamente porque os EUA parecem ser o paraíso para todo tipo de louco), jornalistas, psicólogos, psiquiatras, artistas, todos são chamados a opinar. Todo mundo tem uma teoria sobre nós. Que somos seres monstruosos, como pode um ser humano ser assim? Mas não somos assim. Aquilo é apenas a nossa melhor parte, o salto de suicida, o mergulho do penhasco em direção à vida. As pessoas se assustam e procuram a tal besta-fera, e geralmente se surpreendem ao descobrirem que o MAL era aquele vizinho boa-praça, aquele tio sorridente e brincalhão, aquele funcionário tímido e metódico, incapaz de fazer mal a uma mosca. Porque onde todos procuram o MAL, como nos truques de mágica, é exatamente onde ele não está. O verdadeiro crime que nós, os serial killers, perpetramos está na vida que matamos em nós, que não exprimimos enquanto levamos nossas vidinhas medíocres e enfadonhas, e que só aflora quando, no meu caso, por exemplo, uma nuca, um passo, um cabelo, um certo olhar ou sorriso, uma movimentação de braços, ou o despojar diante de uma vitrine, algo me mobiliza e me convida – sim, é um convite, do eu para mim, que me faz seguir aquela mulher e, ao final, se tudo der certo (certo para mim e terrivelmente errado para ela – aceito a ponderação), ela estará morta e eu vivo, vivo como só estarei novamente quando outra nuca, ou passo, ou jeito, ou, ou - se é que me entendem.

[Eu, Deus é um capítulo de meu novo romance "Maravilhoso Mundo das Mulheres", segundo da trilogia que iniciei com "Madame Flaubert" (Editora Publisher, 2013), e que se encontra em fase de finalização para ser lançado ainda este ano]