O papel da televisão
A íntegra da edição do debate Lula-Collor em 1989, no Jornal Nacional

Hoje vencem inúmeras concessões de rádio e TV. Inclusive cinco da Rede Globo. Um bom dia para pensarmos na influência que exercem no dia-a-dia da população e do país. De pensarmos também se os concessionários estão cumprindo o que determina nossa Constituição.

Para ilustrar essa nossa reflexão, trouxe do baú da história a edição feita pelo Jornal Nacional do último debate entre Collor e Lula, em 1989.

Abaixo, veja um trecho, editado por mim, do documentário da BBC “Além do Cidadão Kane”, que trata do assunto.


Pesquisa Ibope apontava empate técnico entre os candidatos


Às vésperas do segundo turno das eleições presidenciais de 1989, Collor descia ladeira abaixo, enquanto Lula subia, lenta e consistentemente. Isso é o que mostra quadro acima, que reproduz pesquisas do Ibope.

Aí veio o debate entre os dois, em 14 de dezembro. E, mais importante que ele, a edição do debate levada ao ar pelo Jornal Nacional na noite seguinte, antevéspera da eleição.

Mas, antes de falar no debate e sua edição, é importante relembrar rapidamente alguns detalhes do que estava acontecendo no país por aqueles dias.

Lula e Collor: dois azarões em 1989

Aquela era a primeira eleição direta para presidente da República, depois de quase 30 anos. Os dois candidatos que ficaram para o segundo turno surpreendentemente bateram medalhões de nossa política. Ninguém, em sã consciência, arriscaria prever, um ano antes, que haveria um segundo turno disputado por Lula e Collor, sem a presença de Brizola, Covas, Ulisses Guimarães.

Collor era um obscuro governador de Alagoas e Lula um líder sindical, sem paciência para o legislativo, onde exercia o mandato de deputado federal.

Eis a lista completa dos candidatos, com os votos que obtiveram no primeiro turno:

1º lugar - Fernando Collor de Mello (PRN / PSC) - 20.607.936 votos
2º lugar - Luiz Inácio Lula da Silva (PT / PSB / PC do B) - 11.619.816 votos
3º lugar - Leonel de Moura Brizola (PDT) - 11.166.016 votos
4º lugar - Mário Covas Junior (PSDB) - 7.786.939 votos
5º lugar - Paulo Salim Maluf (PDS) - 5.986.012 votos
6º lugar - Guilherme Afif Domingos (PL /PDC) - 3.271.986 votos
7º lugar - Ulysses Guimarães (PMDB) - 3.204.853 votos
9º lugar - Roberto Freire (PCB) - 768.803 votos
10º lugar - Aureliano Chaves (PFL) - 600.730 votos
11º lugar - Ronaldo Caiado (PSD) - 488.872 votos
12º lugar - Affonso Camargo (PTB) - 379.262 votos
13º lugar - Enéas Carneiro (Prona) - 360.574 votos
14º lugar - José Alcides Marronzinho de Oliveira (PSP) - 238.379 votos
15º lugar - Paulo Gontijo (PP) - 198.708 votos
16º lugar - Zamir José Teixeira (PCN) - 187.160 votos
17º lugar - Lívia Maria (PN) - 179.896 votos
18º lugar - Eudes Mattar (PLP) - 162.336 votos
19º lugar - Fernando Gabeira (PV) - 125.785 votos
20º lugar - Celso Brant (PMN) - 109.894 votos
21º lugar - Antônio Pedreira (PPB) - 86.100 votos
22º lugar - Manuel Horta (PDC do B) - 83.280 votos

A inflação nas alturas

O governo do presidente Sarney fazia água por todos os cantos. Acusações de corrupção e uma inflação que crescia diariamente deixavam a população à procura de alguém com um plano salvador, que pusesse ordem na casa. Acabasse de uma vez com a corrupção e a inflação. O país queria tranqüilidade política e econômica.

Pesquisa do Ibope, em novembro, mostrava o tamanho do desgaste do presidente Sarney: para 60% dos entrevistados seu governo era avaliado como ruim/péssimo. E deixou o governo com uma inflação de 80%, ao mês. Não há engano, é ao mês mesmo.

O seqüestro de Abílio Diniz

Folha de S.Paulo:

O seqüestro do empresário Abílio Diniz ocorreu dias antes da realização do segundo turno da eleição presidencial, em dezembro de 89. O cativeiro do empresário foi descoberto na véspera da eleição.
Um dos seqüestradores, o chileno Sergio Urtubia, preso, apareceu vestindo uma camiseta do PT (Partido dos Trabalhadores).
Em sua casa, a polícia encontrou material de campanha do PT e uma agenda com números de telefones de pessoas do partido, entre eles Eduardo Suplicy (na época, presidente da Câmara Municipal paulistana), José Dirceu (então secretário-geral do PT) e Luis Eduardo Greenhalgh (então vice-prefeito de São Paulo).
O Partido dos Trabalhadores afirmou, na época, que a camiseta e o material do PT haviam sido usados propositadamente para prejudicar a candidatura de Lula (PT) à presidência.

Não foi só o Partido dos Trabalhadores quem afirmou isso. O seqüestrador Humberto Paz disse, ao depor à Justiça, ter sido torturado pela polícia. E mais:

"No sábado de manhã, dia 16 de dezembro [um dia antes da votação], alguns policiais também arrancaram minhas roupas e colocaram-me uma camiseta do Partido dos Trabalhadores", afirmou.

14 de dezembro de 1989: O dia do debate final

Além da elevada temperatura de uma votação extremamente polarizada, existiam outros fatores desestabilizadores: a inflação, a sensação de fim e falta de governo, o seqüestro do empresário (ainda em andamento no dia do debate).

Terreno fértil para o surgimento de boatos. Em São Paulo, corria um que dizia que o PT confiscaria casas, apartamentos, e até quartos de quem morasse em apartamento com mais de dois (aos ouvidos de hoje parece incrível, mas aconteceu), para alojar “companheiros”.

Outro boato afirmava que Collor apresentaria uma nova e avassaladora bomba contra Lula. De igual ou maior potência que o caso Miriam Cordeiro.

No dia 12 de dezembro (dois dias antes do debate), o programa eleitoral de Fernando Collor levou ao ar o depoimento de Miriam Cordeiro, uma antiga namorada de Lula.

"Eu não posso, em momento algum, apoiar um homem que acabou com a minha vida. Como eu posso apoiar um homem que me ofereceu dinheiro quando ele soube que eu estava grávida de um filho dele? Ele me ofereceu dinheiro para abortar... No nosso tempo de namoro, ele dizia que detestava negro. Apareciam artistas negros na televisão, e ele ficava nervoso. Como é que fica hoje?"

Todo esse ambiente foi bem explorado por Collor no debate. Ele colocou várias pastas empilhadas sobre sua bancada, como se, a qualquer momento, fosse sacar de alguma delas a tal bomba.

Buscou também explorar o medo incutido na população e o ambiente caótico de uma eleição em meio a um seqüestro, às revelações de Miriam Cordeiro, às greves que se sucediam num país em fim de governo e sem comando.

O debate, a pesquisa Gallup e a edição do debate pelo JN

Nesse ambiente ocorreu o debate. As pesquisas mostraram que Collor foi o vencedor. Mas é normal as pesquisas mostrarem vitória nos debates de quem já estava à frente nas pesquisas.

O que as pessoas não comentam é que uma outra pesquisa, esta do instituto Gallup, embora também apontasse vitória de Collor no debate, mostrava números diferentes, em relação aos indecisos. Para estes, Lula havia sido o vencedor do debate, com um índice de 60%. E, na reta final, sabemos da importância dos votos dos indecisos – ainda mais numa disputa acirrada como aquela.

Por isso, foi fundamental para a vitória de Collor a edição do debate final, realizada pelo Jornal Nacional.

Além de escolher os melhores momentos de Collor e os piores de Lula, a edição deu um minuto a mais de tempo ao candidato do PRN.

Reparem na transcrição da íntegra do debate abaixo e no trabalho feito pelo editor, que selecionou trechos que explorassem e amplificassem os temores e preconceitos da população em relação a Lula. E aí, naquela eleição, o medo venceu a esperança.

A íntegra da edição do debate Lula-Collor no Jornal Nacional

A transcrição é da Folha de São Paulo.

Cid Moreira: A campanha eleitoral no segundo turno teve seu momento mais importante na noite de ontem. Foi o duelo entre os candidatos pela televisão. O debate durou quase três horas e foi transmitido por um pool formado pelas principais quatro emissoras redes de TV. Reveja agora alguns momentos do debate:
Lula: É preciso saber de antemão que desde 1980, portanto já há dez anos, atrás, o partido dos Trabalhadores, ele foi fundado na base da liberdade política, na base da liberdade de autonomia sindical, na base do pluralismo político.
Collor: De um lado está a candidatura do centro democrático, por mim representada, do outro lado está uma candidatura que esposa teses estranhas ao nosso meio, teses marxistas, teses estatizantes, teses que não primam pelos princípios democráticos consagrados na nova carta constitucional, até porque o partido daquele que é meu adversário se negou a assinar, ou não a assinar, mas votou contra o texto constitucional.

O Tratamento das Greves

Lula: E nós vamos tentar criar instrumentos para que essas categorias essenciais passem a ser tratadas como categoria essencial do ponto de vista do salário que cada um vai receber.
Collor: Agora, há um outro tipo de greve, que é a greve política, que é a greve patrocinada pela CUT, que a greve patrocinada pelo braço sindical do outro candidato. Essa greve política é feita apenas para realçar, colocar no noticiário as suas lideranças. E este grevismo político já recebeu uma resposta drástica, uma resposta negativa da sociedade, que não aceita mais este grevismo político.

A Questão do Nordeste (vinheta com locução de Cid Moreira)

Lula: O problema do Nordeste não é um problema de cerca, de seca, é um problema de cerca. Daí porque defendi a reforma agrária, senão morreriam milhões e milhões de nordestinos, como está aí a imprensa dizendo e o IBGE afirmando que é possível até nascer uma sub-raça.
Collor: Eu quero de alguma maneira repelir essa insinuação de que nós sejamos sub-raça, até porque sub-raça eu não sou, como também acredito que meu adversário não seja sub-raça somente pelo fato de ter nascido no Nordeste. A prova de que não somos sub-raça, deputado, é que nós estamos aqui disputando a eleição presidencial, duas pessoas com origens no Nordeste.

A Violência na Campanha (vinheta com locução de Cid Moreira)

Collor: Nós nunca fomos intolerantes, baderneiros e bagunceiros para irmos lá e fazer o que eles fazem e o que fizeram nos nossos comícios. Agora mesmo, fora de uma manifestação, numa passeata, a jogadora de basquete, a Norminha, foi agredida, agredida covardemente por seis marmanjos, que brandiam a bandeira vermelha, com a foice e o martelo do PT. Isso é uma atitude democrática?
Lula: Eu, que durante várias vezes, o meu partido foi acusado de violência, eu acredito que pouca gente nesse país foi vítima de violência como o foi o Lula em toda a sua vida política. Portanto, eu estou tranqüilo que cumpri com meu dever cívico enquanto candidato, estou tranqüilo que cumpri com meu dever cívico enquanto a pessoa preocupada em elevar o nível de consciência do nosso povo, e estou tranqüilo de que essa contribuição será e foi ouvida pelo nosso povo.

Salários (vinheta com locução de Cid Moreira)

Lula: A pergunta que eu queria fazer ao meu adversário é o seguinte: quais as medidas concretas que você tomaria caso um político seu, um político do seu partido, tentasse legislar em causa própria, tentasse fazer uma legislação para tirar proveito pessoal do seu projeto de lei?
Collor: Eu tenho um caso concreto. Recentemente, o deputado Renan Calheiros, líder do PRN na Câmara dos Deputados, encaminhou um projeto de lei para congelar os salários já polpudos dos senhores deputados federais e dos senhores senadores da República, que, como disse há pouco, como o deputado do PT passa a ganhar 200 mil cruzados novos, mais de 100 vezes, mais de 100 vezes o salário mínimo no país. Que tem mordomias, como operações em hospitais caríssimos. E esse projeto de lei, foi solicitada urgência urgentíssima a todos os partidos. O PT se negou a assinar.

Os Acordos Políticos (vinheta com locução de Cid Moreira)

Collor: O ex-governador Leonel Brizola afirmou que o vice do outro candidato, afirmou com letras maiúsculas, que o vice do outro candidato é corrupto. Eu queria saber do outro candidato: o ex-governador Brizola está mentindo ou o seu candidato a vice-presidente e realmente corrupto?
Lula: Brizola disse que o Bisol contraiu um empréstimo que ele considera imoral e o Bisol disse que o empréstimo é correto e que vai processar o Brizola. Ora, obviamente que eu, quando eu fiz a aliança com o Brizola, eu não pedi pro Brizola passara a gostar do Bisol e não pedi para o Bisol passar a perdoar o Brizola. O que eu pedi era para que os dois se entendessem e que o momento maior era ganhar as eleições.
Collor: É rigorosamente inacreditável. O ex-governador Brizola chama o candidato a vice do adversário de corrupto e o candidato acha que é perfeitamente normal. Apenas pede aos dois que não se digladiem, que não se xinguem nesse período para tirar proveitos eleitorais, para que não afete a questão eleitoreira.

Alexandre Garcia (entre os dois candidatos, durante o debate): Estamos iniciando a última parte do último debate desta campanha eleitoral. Para as últimas palavras dos dois candidatos. Por sorteio, vai falar em primeiro lugar o candidato Fernando Collor de Mello e, por último, o candidato Luiz Inácio Lula da Silva.

Collor: Eu gostaria de transmitir a todos vocês a minha enorme confiança de que continuaremos juntos no próximo dia 17. Sim, no dia 17 nós vamos dar um basta definitivo à bagunça, à baderna, ao caos, à intolerância, à intransigência, ao totalitarismo, à bandeira vermelha. Vamos dar sim à nossa bandeira. Essa que está aqui (aponta para o peito), a bandeira do Brasil, a bandeira verde, amarela, azul e branca.
Lula: Nós, que pertencemos à classe trabalhadora, sabemos perfeitamente bem que a nossa luta titânica é para escapar da fome, é para escapar do desemprego, é para escapar da favela ou de baixo de uma ponte. Em função não de méritos pessoais, mas em função da competência de uma categoria profissional, em função da competência de milhares de brasileiros, em função da competência dos partidos com que eu me orgulho de estar aliado, eu estou hoje disputando a Presidência da República para ganhar as eleições no dia 17.

Cid Moreira: E quem venceu o debate? O Instituto Vox Populi fez esta pergunta a 490 telespectadores em 114 municípios. 22% dos entrevistados acharam que o debate foi ótimo; 39,5% o consideraram bom; o debate foi regular na opinião de 28% dos telespectadores; e 7,7% disseram que o encontro ficou entre ruim e péssimo.

Veja agora a avaliação do desempenho dos candidatos:(vinhetas com locução de Cid Moreira)

Melhor desempenho: Collor: 44,5%,Lula: 32%
Idéias mais claras: Collor: 45%, Lula: 34,1%
O mais preparado para governar: Collor: 48%, Lula: 30%
Melhores planos de governo: Collor: 45,9%, Lula: 33%
Quem atacou mais o adversário?: Collor: 33%, Lula: 30,8%

Alexandre Garcia (no estúdio): O debate dos candidatos teve um alto índice de audiência e o público superou o do debate anterior. Ao transmitir o encontro dos presidenciáveis, a televisão cumpriu mais uma vez o seu papel na democracia.

Hoje, 5 de outubro de 2007, quando vencem algumas das principais concessões da Globo (Rio, São Paulo, Minas Gerais, Brasília e Pernambuco), é legítimo perguntar:

- É esse o papel a ser cumprido por uma emissora de televisão numa democracia?

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